Fria manhã, apática, chuvosa. Manhã excepcional de janeiro, comum em julho. Sensação fria, excepcional nesse jovem, comum para alguns. Sentir o princípio do fim é doloroso. Saber do princípio do fim é angustiante, torturante por ansiedade. É de se apegar a uma esperança, solitário desejo. Que não doa tanto quanto se imagina. Incrível como, de maneira inconsciente, lidou com o prazo. Acordou um minuto antes de o despertador forçá-lo. 4:59. Não queria sentir o susto, a pancada da realidade, mas desejava prolongar seu transe fugitivo o quanto fosse possível. Evitar a pancada faz parte do desejo de que não doa tanto quanto se imagina.
Fez o caminho de maneira inerte. Prova de que hábitos tendem à inércia. Na hora habitual, chegou ao destino. Lá a achou, sua conselheira, companheira, vítima de pancadas, causadora de suas dores. Com quem tinha um encontro diário, a única que o abraçava constantemente, um abraço que o fazia parte dela,engolia, acolhia. Ele, sentindo-se pequeno em sua imensidão, não era obstante em tentar conhecê-la em cada novo amplexo. Contudo, naquele dia, estava mais fria que o normal. Bem como mais lacônica. Ao tocá-la, foi como se cada parte de seus corpos estivesse sendo ferida. Um abraço cortante. Um afago invertido.
Iniciou o que devia fazer. A rotina, cumprir a rotina. Começou tão cedo que parecia infindável. Agora estava diante do (nunca tão cogitado) fim. Da outra borda. Os temidos últimos cinquenta metros que deveriam ser os mais rápidos, em tal dia, prolongaram-se com uma preguiça maliciosa. Pancada da realidade. Era preciso aceitá-la, não se pode viver no transe fugitivo dos sonhos, por mais que se insista em esticá-lo.
Nesse dia, e somente nele, é consentida, aos que se encontram nesse contexto, uma honra. Recompensa, talvez. No derradeiro dia de seu convívio, poderia passar com ela quanto tempo quisesse, o quanto fosse “suficiente”. E assim o fez. Como se prolongar a dor fizesse dela menos intensa. Procurava o cansaço e a exaustão para que esses preenchessem o vazio ameaçado de ocupação pela melancolia. Não obteve nenhum dos três. Sentiu torpor e para ele foi suficiente. Estava pronto para abandoná-la. Ela causou-lhe torpor, não havia motivos para manter contato.
Saiu. Deixou-a fria e imóvel. Prometeu-lhe voltar. Ali achou a melancolia. Agora, encontra cansaço e exaustão nas suas tentativas de retorno. Pancadas da realidade.
Dentre os costumes do grilo, um inusitado sempre se percebia.
Ele ria! Sim, o fazia, normalmente, três ou quatro vezes ao dia.
Ria sozinho, solitária alegria cultivava.
E aquela risada, sempre questionada, o que diacho significava?
O motivo permanecia não revelado,
Pois o humor do grilo era bastante malvado.
Por isso, muitas vezes, continha seu prazer
Que sempre nascia de deboches do alheio fazer.
Como um galo, crispando a crista
Com seus critérios criava a lista.
Criticava criaturas, cristalino, criativo.
Nem crismado cristão escapava de seu crivo.
Mas, o inseto encontrou quem das piadas risse,
Alguém que via graça em meio a tanta canalhice.
Agora, pode compartilhar seu humor, antes mesquinho
Pois, doravante, esse grilo não mais rirá sozinho.
Depois de algum tempo você aprende a diferença,
a sutil diferença entre dar a mão e acorrentar uma alma.
Um Manual de Sobrevivência - Willian Shakespeare.